Querida Adriana, eu não tenho um prêmio para te dar e o máximo que posso fazer é recomendar o seu livro neste espaço de imprensa negra.
Tenho feito isso desde 2020 e tem sido um prazer enorme ler e compartilhar minha opinião sobre alguns livros. Óbvio que essa carta não é só para você. É para quem quiser ler.
Me senti tão bem ao passar pela última página de ‘Ébano sobre os canaviais’ que resolvi escrever essa sugestão de leitura em formato de carta. A última sugestão que fiz foi sobre um livro de cartas, do Marlon Pires Ramos, e acho que fiquei inspirada. Desculpe a franqueza e a ousadia.
Eu comecei a ler o seu livro em dezembro, mas foi um dia ruim e, por isso, não me conectei com a história. Deixei o livro de lado por muitos dias, esperando o melhor momento. Sabia que era uma história sobre buscas e encontros, então tinha que estar preparada para lê-lo.
O dia chegou, depois de um relato comovente de Antoune Nakkhle sobre o encontro de sua filha com sua mãe biológica. Molhei o pescoço com aquela história e, assim, sensibilizada, comecei novamente a leitura de Ébano sobre os canaviais. O tempo voou e li as 240 páginas em poucas horas. Eu só pensava que queria ter conhecido Kina e Ébano, se elas existissem para além das letras impressas no livro.
Após aprender um pouco com a leitura de Terry Eagleton, notei a sua grande capacidade de construir contextos, de colocar o leitor no ambiente certo para conhecer determinada situação. Viajei para uma Recife do passado e do presente, por fazendas e pela triste história escravocrata de privações de liberdades e que hoje ainda nos alcança, especialmente as mulheres e pessoas negras.
Ouvi a voz de Kina, mãe da protagonista, contando histórias para as crianças. Consigo até dizer que ouvi a respiração dela e senti a temperatura gélida do seu suor quando, por inúmeras vezes, ela foi violada, porque sei que desse estupro localiza a fundação do nosso Brasil.
É tudo inventado, como deve ser a boa literatura, mas óbvio que a imaginação se alimenta da realidade e, quando isso acontece, como em ‘Ébano sobre os canaviais’, caímos com prazer nas garras do escritor – no caso, da escritora.
Querida Adriana Vieira Lomar, fui totalmente sua por algumas horas. A busca por respostas sobre a origem das personagens me encheu de vontade de avançar de forma ávida pelas páginas, ainda que eu tivesse que fazer pausas para também refletir sobre as minhas origens.
O pano de fundo, os períodos narrados no livro, me conduziram a um milhão de pensamentos e hipóteses sobre mim e nós. Tomei ciência da “escravatura branca”. Achei o termo pesado quando li, ainda na primeira parte do livro, mas logo percebi que fez todo sentido, inclusive para distinguir as histórias das personagens e de que lugares cada uma delas fala e que conflitos vão se estabelecer nesse fantástico enredo.
Desejei que o pai da protagonista tivesse nascido um pouco depois. E que, além disso, pudesse ter tido a oportunidade de ser defendido por Luiz Gama. Talvez não tivesse ficado tanto tempo preso. Preferiria que ele não tivesse feito aquilo, mas, sobretudo, preferiria que tivesse um julgamento justo.
Nem acredito que acabei de pensar e escrever isso. Afinal, essa não era uma possibilidade para aquela época e parece que nem mesmo hoje para pessoas como ele, como nós.
Fiquei extremamente grata por você dar “vida” para Ébano da forma que fez. Ela é bonita, inteligente, consciente, destemida, revolucionária e, ao mesmo tempo, uma mulher simples, amável e que infelizmente precisou abdicar da convivência do amor.
Eu quis caminhar ao lado dela, mesmo tendo total consciência do meu delírio. Eu quis dizer: tudo bem, você fez o melhor que pôde e fez muito por sua mãe, por seu pai, por seu marido, por seu filho e por todas nós mulheres negras livres.
E, ainda que “[…] no jogo de dama, há peças pretas e brancas. No cemitério, há somente a tumba de brancos e mestiços”.
Na fantasia, na literatura, em que também nos informamos sobre o que é ser brasileiro e brasileira, e nela existimos.
Com afeto,
Rachel
Conteúdo publicado originalmente em 02/02/24: https://revistaraca.com.br/para-adriana-vieira-lomar-autora-de-ebano-sobre-os-canaviais/
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Querida Raquel, sua carta é um bálsamo para meu coração escritor.
Escrevi à mão a resposta, tentarei escanear. Construir uma narrativa contemporânea, escolher caminhos e destinos aos personagens, sair do óbvio e contar uma história que fosse compreendida na era das redes sociais não foi fácil e sua carta me incentiva e me recompensa. Sinto-me premiada e agradecida. Muito obrigada!